terça-feira, 16 de abril de 2013

O Beijo idiota
Como de costume, sempre que algo me angustia e me comprime na direção da escrita, dou uma breve pesquisada nas palavras que pululam em minha mente. Digiro-as e as dirijo ao papel digital. Nessas últimas 24 horas, isso aconteceu, e eu não podia me acomodar em apenas ficar pensando como fiz durante muitos anos que perdi a oportunidade de dizer a outros coisas que pensava. Andei de um lado ao outro como quem anseia por um lugar que possa materializar uma obra, assim como fazem os gatos na caixa de areia. Sentei-me frente ao note e fiz aquilo que ninguém poderia fazer por mim. Escrevi. Fi-lo freneticamente tentando aliviar a angústia pela tragédia que ceifara vida de jovens estudantes e que regurgitei por horas a fio antes de digerir. Sei que comecei o texto um tanto quanto escatológico, visceral e verbofágico. Mas o que aconteceu não desceu bem na minha alma de pai que tem filho adolescente e tantos alunos com as mesmas idades daqueles jovens ávidos pela diversão e o prazer típicos de suas lindas fases de vida. Então veio a magia das palavras que o texto me impõe. A primeira, certamente, foi "idiotas". Nossa! Vi coisas idiotas! Um ateu idiota mostrou no face uma foto dos corpos da tragédia e proclamava a não existência de Deus. Vi uma idiota, pretensamente crente, mostrando fotos que precederam o momento das mortes com uma outra foto de jovens rezando. Proclamava, em tom semelhante ao do ateu supracitado, que se estivessem rezando não teriam ido pro inferno. Vi também gente idiota que, na ânsia de promover justiça, tentou culpar os seguranças que retiveram brevemente a saída dos jovens em pânico. Por fim, fui vendo a idiotice mor que foi a do vocalista da banda que acendeu o sinalizador que provocara o terrível incêndio. Outra palavra que me doía como cólicas mentais foi o nome da boate: Kiss. Beijo! Nossa! pensei como uma palavra tão linda e significativa poderia nominar um lugar que fora palco de tal tragédia. Recorri à pesquisa e reflexões simultaneamente. Lembrei-me de frases que me marcaram sobre o tema "beijo". Uma, de um grande amigo e frasista, Edgar Koester, que dizia aos seu alunos: Estudar sem entendimento é igual a beijar sem sentimento. Essa Frase eu utilizei muitas vezes com meus alunos pra levá-los a pensarem um pouco mais em suas micaretas. Eu brincava com eles numa ilustração pra chocá-los, dizendo que o que eles faziam em tal ambiente não era beijar, mas sim beber cuspe e lamber baba. Dizia que o beijo é uma das coisas mais lindas que o ser humano aprendeu a fazer na busca do amor e que é um encontro de almas muito antes de ser meramente de corpos. Ainda que seja em nome do prazer, há que se reservar lugar delicado para um beijo em um outro ser humano. Então comecei a me dar conta de que o fato de uma boate ter como nome Kiss deveria fazer menção à prática das micaretas, que é essa moda de beijar do tipo "quanto mais, melhor". Num desses acertos televisivos, o folhetim, verdadeiramente infantil, Carrossel nos presenteou com uma trilha que uniu clássicos da MPB com outras músicas novas, não inferiores. Dentre elas, há uma que fala do beijo. Diz em um trecho: "Será que tem beijo ruim? " Lembrei-me de uma frase de um poeta francês Guy Maupassant "O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?" Na frase de Maupassant podemos perceber o espectro perigoso de um beijo ainda que encantador e nos leva a pensar sobre a necessidade de alguma responsabilidade diante dele e de suas consequências. Coisa que certamente nem o "responsável" pela boate, nem o "responsável" pela banda teve. Não isentei o público dessa responsabilidade à toa, pois quem oferece o beijo é o grande responsável por suas consequências. Assim como Judas traiu Cristo, que aceitou resignadamente aquela marca. A "gurizada" que acha que um show musical precisa de tochas e sinalizadores pra encantar, como faz a banda de gente grande Kiss, que toca hard rock, se quer impressionar a plateia, deveria ter profissionalismo de quem executa o seu ofício. Os beneficiários do estabelecimento que atraem mercadologicamente os jovens ávidos por seu rituais dionisíacos devem assumir a proteção de seus generosos clientes. Uma boate tem, nesse caso, valor simbólico de templo. Gente! Vivemos um momento da História em que a individualidade toma conta de nossas almas de forma avassaladora. Isso ocorre por estarmos negando a nossa necessidade de vida em grupo e de assumirmos as nossas obrigações coletivas e públicas. Por isso produzimos o pior tipo de representação. A língua grega é uma das mais importantes chaves de compreensão de nossos significados. A palavra idiota vem de "idio", que significa "próprio". Idiota na Grécia antiga era a palavra pra designar aqueles que, mesmo tendo todas as condições e atributos necessários à vida na Polis, se recusavam a participar. Recusavam-se a uma consciência coletiva. Os idiotas de hoje dispensam qualquer informação que não os privilegie imediatamente. Busquei imagens que tratassem de beijo para ilustrar esse texto. Elegi essa que vocês podem ver em homenagem a um herói anônimo, o tenente Lacerda, que morreu no incêndio da Kiss. Ele morreu devido a inalação dos gases tóxicos da fumaça do incêndio. Não por ter ficado preso às chamas, mas por ficar insistindo em salvar vidas que estavam lá dentro. Ele agiu por um impulso. Como aqueles apaixonados que se lançam na aventura de amor. Rumam na direção do beijo, sem medo que este represente a morte. Fazem-no pelo amor... pelo amor ao próximo. Esse é um tipo de idiotice que todos nós apaixonados e amantes bem conhecemos, pois não é uma idiotice egoísta nem muito menos superegoísta. É uma idiotice de nossa id. Aquela que nos leva rumo ao prazer. No caso do tenente Lacerda, a do prazer de dar algum significado para a sua vida, ainda que em prol do outro, mesmo que seja um desconhecido. Imaginei o Lacerda tentando reanimar seus semelhantes instintivamente como um deus que dá o sopro de vida. O tenente Lacerda nos deixa um legado em meio a essa tragédia muito além das gregas. Deu-nos a generosidade dos amantes que beijam não uma pessoa em especial, mas qualquer um de nós, todos nós! Com um beijo de vida, devolveu esperança e nos livrou da morte... do beijo da morte!

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