quarta-feira, 28 de março de 2012

Livres


Eu quis traduzir tudo aquilo que vi, quis revelar meus sonhos. Um agente entre um mundo e outro, entre partes de um todo. Tentei revelar imagens e sons de universos ocultos. Memórias de um tempo por vir. Queria interpretar sentimentos e vontades, exprimir com clareza o que outros tentam dizer sem conseguirem, sequer, entender. A vida é uma arte imprecisa, um espetáculo sem esmeros e produção. A arte, mesmo assim, a imita e recria suas vozes ocultas caladas nos olhares perplexos dos que não se percebem nos espelhos.
Neles os enigmas se desfazem aos olhos dos que dormem acordados ou sonham de pé. Olhamos o zero, o vazio de nossos corpos que tomam sentido com a humilde atitude dos que desejam se encontrar. Despindo o emaranhado segredo de nós mesmos, lemos em pautas e cifras emocionantes canções. Colocamos juntos elementos de nossos cantos mais silenciosos, revelamos arranjos e compomos imagens. Fazemos tempos verbais, pintamos paisagens, criamos lugares, relevos de nós mesmos... cenários que faltavam para nos contextualizar no espaço. O tempo se faz em movimentos e sensações coreográficas. Sincronizamos os olhares. Somos nós em nós mesmos. Aprendemos a ver, nos outros, imagens da nossa identidade. Idem, criatura e criador, nos diferenciamos do que fomos para sermos aquilo que devemos ser.
Agora nos comportamos, nos levamos em partes para um mesmo lugar. Conduzimo-nos aos pares, delicadamente, como numa valsa imaginada. Somos agora verdade. Aquele forte e perene sentido que sutilmente nos arrebata para um lugar onde somos realizados. A realidade nos promove a reis de nós mesmos. Autônomos, soberanos, auto-determinados e, com leveza... agora sim, livres.
Ricardo Le Duque

Amores Cativados


Desde os 70, ou seja, desde que me entendo como gente, escuto a célebre frase do consagrado escritor Antoine Sant-Exupéry do grande Best Seller das passarelas de Misses: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Li o Livro depois de tanto escutar a frase.
A idéia de cativar pessoas foi muito amplamente incentivada em todos os tempos em que vivi. Entenderam que é cativando que se conquista a simpatia dos outros. Logo, cativar está na cartilha e nos métodos daqueles que desejam “ficar bem na foto” com aquele que se pretende estabelecer uma relação de afeto e amor. Entretanto a frase foi sendo gasta com o passar dos anos e passou a ser usada como uma espécie de extorsão de amantes que não queriam arriscar-se em amores incertos. Mandar “na lata” essa frase tinha como intento deixar o parceiro enquadrado nas leis universais da justiça implacável de Deus. Era uma espécie de “veja bem! Olha só, eu estou me entregando a você nessa relação afetiva por acreditar que você tem pleno entendimento do que isso significa. E se não tem eu vou logo esclarecendo: Eu te amo e pronto. “Não ouse me desapontar”.
É claro que dentro das leis universais há que se responsabilizar por tudo aquilo que você for capaz de produzir. Aquilo que te realiza pelos seus atos é de sua responsabilidade. Mas e quanto ao amor? Será que alguém ama por ter produzido um fato? Será que se é amado por alguma atitude? Creio realmente que não. Uma música do Beto Guedes, que marcou profundamente em minha mocidade dizia: O medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier, livre para sempre estar onde o justo estiver... é não arriscar esperando que façam por nós o que é nosso dever: Recusar o poder. Estas frases sim me guiaram em minhas vivências no amor. Sempre tive a clara percepção de que o amor que amamos é algo que está muito além daquilo que alguém pode proporcionar em nossas vidas ou que possamos fazê-lo. Logo, amar não é uma atitude, uma produção, um ato pelo qual temos de prestar contas. Amar é, talvez, a mais bela das expressões da Liberdade. Para se viver uma plena e satisfatória vivência de amor é preciso estar preparado para se viver uma aventura pautada nas conseqüências do compromisso que assumimos com a liberdade.
Não é a toa que o amor é um dos elementos imprescindíveis na essência espiritual. As religiões tem sempre o amor como a mais importante pauta para se construir uma vida em acordo com a divindade e a santidade.
O que pode ter levado tanta gente boa a confundir o significado do amor pode estar na má interpretação dos mitos que o explicam. Para a sociedade helênica (os povo da antiga Grécia) Eros estava sempre associado a Afrodite. Esta por sua vez tem significado controverso em várias versões, sobretudo nas mutações que sofreu com a latinização da cosmogênese grega . Há até uma variedade de adjetivos para ela na condição de Vênus(nome romano para Afrodite) . Por exemplo há a Vênus porné para diferenciá-la de outras versões mais elevadas. Porné é a palavra que radicaliza a pornografia. Entenderam? Quando se pensa em amor fica impossível não lembrar de desejo e suas conseqüências, muitas vezes perversas. É aí que o amor pode se confundir com as amarras das correntes que escravizam os “pobres mortais” como nós.
Só mesmo quando se conhece o mito de Psique é que se tem a percepção plena do que realmente é o amor entre um casal. Só assim se percebe que Eros (o latino Cupido) vai além de Afrodite em seu poder e significado.
A vitória do amor passa pela vitória que temos de ter sobre nossas humanas condições infantis de dar ouvidos aqueles que certamente invejam nossa condição de amantes. É também a vitória sobre nossos medos de que o outro seja alguém indigno de nossa confiança para uma aventura tão radical. É vencer o infantil desejo de nos apossar de todos os segredos e recantos ocultos daqueles que amamos. Pelo simples fato de que ao cometermos tal violência podemos nos deparar com alguém que é muuuuuito menos impuros que nós mesmo. E que nossos pecados podem ser piores que os dele. Quando nos vemos diante disso prostramo-nos diante deste amor que agora, devassado e sem o direito a liberdade resolve fazer aquilo que qualquer cativo faz diante do seu implacável senhor: foge! Foge para bem longe! Para além do alcance daquele.que não confiou nele e que o tornou cativo.
Esse drama, muito bem encenado no mito de Psique e Eros, tem finam feliz! Não se assustem! Afinal Eros é um Deus. Psiquê sim, uma dimensão humana. Ela é a nossa alma. Assim a alma é infeliz sem o amor. O lado bom da história é que o amor, Eros, também é infeliz sem a alma. Para tê-la de volta e numa condição totalmente elevada. Ele faz greve e deixa de realizar as suas tarefas no Olimpo até que Zeus permita que ele tenha a sua “alma”, psique” de volta. O amor quer viver entre nós pois alegra-se em ter um elemento que o aproxima da humanidade.
Portanto antes de pensar que o amor é fruto de ações cativantes e que aquele que ama tem a responsabilidade pelo ser amado duvide de suas conclusões racionais sobre esse divino sentimento que é o amor. Quem deseja de fato vivê-lo precisa estar preparado para uma aventura mítica que é capaz de elevá-los as mais altas nuvens.
M.M Soriano, um escritor frasista de primeira linha contrapõe a sacralidade que deram a frase do autor do belo livro “O Pequeno Príncipe”. Ele diz: Não, Saint-Exupéry! Tornamo-nos totalmente irresponsáveis quando cativados. Quem foi cativado tem todo o direito de fugir do seu algoz, a Alma medrosa. Resta depois ao algoz buscar nos mais profundos lugares de seus medos onde poderia se esconder a tão livre amor.
Ricardo Le Duque